Música litúrgica: entre beleza, simbolismo e expressividade
Eurivaldo Silva Ferreira
As
comunidades estão cada vez mais redescobrindo que a liturgia é um encontro, uma
ação, um acontecimento e uma festa. A celebração não se faz só com palavras,
mas também com movimentos, gestos, música e dança. O batismo, a santa ceia, a
celebração da palavra, o oficio divino, as vias-sacras, as procissões, as
romarias são ações simbólicas que nos permitem expressar em linguagem humana a
presença escondida do Deus que se fez ‘carne’, humano com os humanos (1Jo 1,
1-4). Esses gestos são a linguagem da nossa adoração e da nossa comunhão com
ele na intimidade do seu amor. O fruto que colhemos na liturgia, a graça de
Deus que dela nos vem para o nosso crescimento na fé passa pela expressividade
da ação litúrgica. (Carta de Princípios
da Rede Celebra de animação litúrgica, nº 16).
De
fato, a liturgia ocupa um lugar central em toda a ação evangelizadora da
Igreja. Ela é o “cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a
fonte de onde emana toda a sua força” (SC
10). Nela, o discípulo realiza o mais íntimo encontro com seu Senhor e dela
recebe a motivação e a força máximas para a sua missão na Igreja e no mundo (cf. DGAE 2008-2010 nº 67) (Carta aos
agentes da música litúrgica, CNBB).
Na
expressividade da ação litúrgica, que é fonte e cume, cujo Mistério Pascal se
faz presente pela força do Domingo, o Dia do Senhor, e também na comunidade
reunida em torno da mesa da Palavra e do Pão, a música ritual se torna parte
integrante deste mistério. Adentramos o mistério pela força dos símbolos, com
sua carga, sinais e codificações. A música é um forte símbolo de beleza que nos
ajuda nisso. Como percebermos a relação entre beleza litúrgica e a categoria
simbólica que a música ritual ocupa nas celebrações? Para que isso se cumpra na
prática, muito depende da qualificação das equipes de músicos, cantores e
instrumentistas de nossas comunidades, que vivem no dia-a-dia o exercício
batismal, pelo qual foram chamados a servir no seu ministério, sendo
verdadeiros discípulos e missionários.
Diz o
nº 34 da Sacrosanctum Concilium que a
liturgia deve ser realizada com nobre simplicidade. Homens e mulheres,
indivíduos de uma comunidade de fé, devem empenhar-se nisso. Poderíamos aqui
enumerar uma série de substantivos e adjetivos que compõem a família da
nobreza, da mesma forma outra série para a simplicidade. Mas a nossa referência
será direcionada a uma: a beleza, e nela está caracterizada a música litúrgica
(música ritual), aquela que acompanha ou é a própria ação litúrgica.
Uma
música bem feita já é bela por si só. Quando ela se insere na liturgia,
torna-se por demais sinônimo de muitas outras qualidades que são bem-vindas na
ação ritual. Em consequência, afirmamos que há uma relação muito profunda entre
beleza e liturgia. “Beleza vista não como mero esteticismo, mas como modalidade
pela qual a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata,
fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira
vocação: o amor” (cf. Bento XVI, Exortação
apostólica Sacramento da caridade, 35). Esta exortação lembra que na arte
da celebração ocupa lugar de destaque o canto litúrgico. Unida ao espaço
litúrgico, a música é genuína expressão de beleza, tem especial capacidade de
atingir os corações e, na liturgia, grande eficácia pedagógica para levar-nos a
penetrar no mistério celebrado.
1. O caráter
simbólico da música litúrgica
Música litúrgica ou música ritual é o conceito acentuado
pelo Concílio Vaticano II para denominar a música que, ou é o próprio rito, ou
acompanha o rito nas celebrações litúrgicas. Esta novidade trouxe um
referencial das fontes da Igreja primitiva, mas esquecido ao longo dos tempos:
a de que o canto da celebração tem uma identidade comunitária, no ato de
celebrar canta-se a força da realidade que este gesto pode simbolizar, ou seja,
por meio da união das vozes que entoam um canto, visibiliza-se a unidade da
Igreja, reunida em assembleia.
A
música ritual, com suas propriedades (poesia, verso, letra, melodia, ritmo, som
etc.) entra nesta categoria dos símbolos. Não podemos desassociá-la do conjunto
da simbologia das ações litúrgicas. Na categorização da música ritual e
comunitária como realidade simbólica, os Pais da Igreja (aqueles que conviveram
com os apóstolos ou próximos deles) consideravam esta união sonora de vozes
como o símbolo de uma realidade mais profunda, já que o canto comunitário é a
manifestação externa da união dos corações na mútua caridade, é sinal da
fraternidade espiritual entre os todos os membros da assembleia reunida, cuja imagem retrata o uníssono dos corações.
S. João
Crisóstomo, outro Pai da Igreja, diz que no canto a uma só voz há uma realidade
simbólica da Igreja, que de muitos membros forma um só corpo. Para Santo
Ambrósio, a relação do canto ritual com o sagrado tem a característica de nos
colocar em comunhão com o mistério, com a realidade divina, mas também com nós
mesmos e com os demais, de maneira que podemos formar um coro de homens
sagrados[1].
Outros ainda
foram unânimes em dizer que o canto ritual exerce um nobre serviço à
atualização da Palavra de Deus, é sinal da alegria e do amor cristão; é o
símbolo do sacrifício espiritual do cristão. Isto transcorreu os tempos e está
presente na liturgia. Observemos o prefácio da Prece Eucarística, este aponta a
realização do canto da terra, na imitação perfeita do canto dos anjos no céu,
apresentados no cantando a uma só voz,
antes da aclamação do Santo.
Para
Xabier Bazurko, que escreveu O Canto
cristão na tradição primitiva, tanto na Bíblia (livro do Apocalipse) como
na Tradição, o canto ritual é assumido principalmente, e como em primeira
linha, enquanto comunitário, como canto entoado pela assembleia em comum e
dentro de um quadro litúrgico[2] e em
comunidade, já que o canto presente no Apocalipse nos aponta para a realidade
desse reino que esperamos, realidade caracterizada pela espera de uma vida
plenamente feliz e perfeita, mas que ainda é oculta ao homem e à mulher,
enquanto passam pela terra. Vivendo a contemplação do mistério deste tempo, o
canto ritual nos ajuda a compreender essa dimensão, a de piedosa e alegre
espera, como num eterno advento. Por isso o canto litúrgico (ritual), como
símbolo, sempre foi considerado como o mais adequado para transcrever a
realidade do além, destaca Bazurko.
Assim,
o canto ritual como símbolo, representa a expressão da união da assembleia,
estabelecendo a igualdade entre todos os membros, superando as diferenças de
idade e de condição social por meio da entoação comum de uma mesma melodia[3],
enquanto aguardam firmes a feliz realização do reino, e o fazem celebrando.
2. A força
propulsora da sonoridade musical
Especialistas
afirmam que a música é uma estrutura sonora complexa sem função biológica
precisa, cujos elementos de base não se referem a nenhum outro objeto ou
acontecimento real. Ela é também capaz de conseguir ao mesmo tempo acalmar
bebês e dar coragem aos soldados que partem para campos de batalha. Imagens
cerebrais mostram que certas zonas do cérebro são ativadas pela música. Ela
exerce o mesmo poder quando o cérebro é impulsionado por estímulos biológicos
fortes, como ingestão de alimento, relações de afeto entre namorados e casais
etc. A música pode também reduzir a ativação das áreas cerebrais implicadas em
emoções negativas[4].
Para outros, a música é considerada uma prática tão antiga quanto a
agricultura. Ela tem o poder de garantir a coesão social e a “sincronização” do
humor, favorecendo a preparação das ações coletivas, seria o caso da música
militar ou da música religiosa[5].
Já na
liturgia, cuja expressão de fé se dá também pela participação da força da
música ritual como sinal sensível, muito mais alcançarão eficácia seus textos
se forem acompanhados de melodias. É esta a sábia e grandiosa intuição da
Igreja que desejou que a música avançasse por sob seus umbrais.
3. A música
ritual nos documentos da Igreja
Com
razão diz o Motu Próprio Tra le
sollecitudini quando afirma que a música concorre para aumentar o decoro e
esplendor das sagradas cerimônias (...) e seu fim próprio é acrescentar mais
eficácia ao mesmo texto, a fim de que por tal meio se excitem mais facilmente
os fiéis à piedade e se preparem melhor para receber os frutos da graça,
próprios da celebração dos sagrados mistérios[6].
Segundo
Divini cultus, os cânticos litúrgicos
contribuíram não pouco para conduzir muitos dos bárbaros à cultura cristã e
civil; ainda, foi objeto de admiração pelo imperador Valente e por Santo
Agostinho, cuja conversão foi marcada pela aceitação da fé cristã após cantar
com as multidões, animadas por Santo Ambrósio[7]. Também
nas igrejas, finalmente, nas quais se constituía um coro volumoso feito de
quase toda a cidade, operários, construtores, pintores, escultores e até homens
de letras embebiam-se, pela liturgia, do conhecimento das coisas teológicas,
como ainda hoje refulge esplendidamente dos monumentos daquela Idade Média[8].
A Sacrosantum Concilium destaca: o canto e
música desempenham sua função de sinais de modo tanto mais significativo na
medida em que “estão intimamente ligados à ação litúrgica” (SC 112). Na mesma linha de pensamento está a orientação do Catecismo
da Igreja Católica[9]
em que considera três critérios principais: a beleza expressiva da oração, a
participação unânime da assembleia nos momentos previstos e o caráter solene da
celebração. Assim, tem finalidade das palavras e das ações litúrgicas: a glória
de Deus e a santificação dos fiéis.
O nº
1158 do mesmo Catecismo afirma que “a harmonia dos sinais (canto, música,
palavras e ações) é aqui tanto mais expressiva e fecunda por exprimir-se na
riqueza cultural própria do povo de Deus que celebra (SC 89)”, o que, de certo modo, vem, afirmar nossas conclusões
acerca da simbiose entre melodia e palavra, que se prestam ao culto das ações
litúrgicas a fim de que estas possam ser realmente meios da expressão do louvor
ao Deus que canta e ora em nós através do Espírito.
Concluindo...
É com essa
preocupação que caminha a Igreja dos nossos tempos. Tudo aquilo de que se
ornamenta a liturgia, dentre eles a música ritual, que é caracterizada como
serva nobilíssima, deve ser objeto de preocupação, a fim de que possam os fiéis
que se reúnem nos templos sagrados para beber a piedade na sua fonte principal,
participando ativamente dos veneráveis mistérios das preces públicas e solenes
da Igreja, não se alimentarem de outro espírito, senão o litúrgico, o mesmo que
vem operando na Igreja, povo de Deus, pelo qual é conduzido pelo Espírito,
desde sua fundação.
Para refletir em grupo ou individualmente:
®
Pense numa música popular que marcou um fato de sua
vida
®
Escreva um pequeno trecho desta música num pedaço
de papel; cante em voz alta...
®
O que lhe chamou a atenção no texto? Quais as
palavras que mais lhe tocam? E na melodia? O que ela lhe inspira, ou quais os
sentimentos que ela lhe sugere? (letra e melodia como signo, sinal)
®
Em nossas liturgias, a música que cantamos está a
serviço da Palavra? Qual palavra cantamos em nossas liturgias?
®
E nós, que palavra(s) carregamos em nosso cotidiano?
®
É possível que essa(s) palavra(s) seja(m)
transportadas para nosso canto litúrgico? Como?
[1] Bazurko, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Paulus, 2005, p.
108 (Coleção Liturgia e Música).
[2] Ibid, p. 224.
[3] Ibid, p. 107.
[4] VIVER MENTE E CÉREBRO. O poder da música. São Paulo:
Ediouro, nº 149, junho, 2005. p. 59
[5] Op. cit. p. 57.
[6] PIO X, Papa. Motu Próprio. Tra Le Sollecitudini sobre a música sacra (1903). In:
DOCUMENTOS SOBRE A MÚSICA LITÚRGICA. São Paulo: Paulus, 2005, p. 13-22.
(Documentos da Igreja)
[7] PIO XI, Papa. Constituição apostólica Divini Cultis sobre a liturgia, canto gregoriano e música sacra
(1928). In: DOCUMENTOS SOBRE A MÚSICA LITÚRGICA , op. cit. , p. 25-34.
[8] Ibid.
[9] CATECISMO DA
IGREJA CATÓLICA, n. 1157.
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