O canto litúrgico quaresmal - Ano C - 2016

Eurivaldo Silva Ferreira

           
O Canto dos Anjos, adquirido da internet (He Qi Galley)
                Cada ano a Igreja se une ao mistério de Jesus no deserto durante quarenta dias – quaresma -, vivendo um tempo de penitência e austeridade, de conversão pessoal e social, especialmente pelo jejum, a esmola e a oração, conforme o Evangelho de Mateus (Mt 6, 1-6.16-18), proclamado na Quarta-feira de Cinzas, em preparação às festas pascais. São cinco domingos mais o Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, que inicia a Semana Santa, também chamada Semana Maior. É este um tempo forte e privilegiado, em que fazemos nosso caminho para a Páscoa, renovando nossa fé e nossos compromissos batismais, cultivando a oração, o amor a Deus e a solidariedade com os irmãos. Tal austeridade deve se manifestar no espaço celebrativo, nos gestos e símbolos, como também no canto e na música, para depois salientar a alegria da ressurreição, que transborda na Páscoa do Senhor[1].    
            O canto e a música são elementos altamente simbólicos e pedagógicos. A música é parte essencial da existência da humanidade e modela, de certa forma, as culturas. Com música se celebram a vida e a morte, o trabalho e a festa, o riso e a dor... Entremeada ao tecnicismo, percebe-se na arte musical um momento de prazer, de encantamento, é como se fosse uma pausa restauradora que se faz através da musicalidade, do som e do canto. O número 112 da Sacrosanctum Concilium [SC] afirma que a música na liturgia tem foro privilegiado.
            A música litúrgica, revestida de seu texto poético e melodia, tem força de realizar aquilo que significa quando se coloca a serviço mesmo da liturgia, solenizando-a, e santificando a assembleia celebrante, por isso ela é o sinal sensível mais eloquente da assembleia celebrante (SC, 7, 112, 113). O canto, com uma melodia eficaz e uma poesia consistente e qualitativa, é capaz de exprimir a alegria do coração que vibra, ao ressaltar a importância da celebração, solenizando-a (Dies Domini, João Paulo II).
             No tempo da Quaresma, o canto litúrgico se reveste do luto, da ausência do “glória” e do “aleluia”, um canto sem flores e sem as vestes da alegria, um canto “das profundezas do abismo”, em que nos colocaram nossos pecados (Sl 130); um canto de quem suplica a misericórdia do Senhor (Sl 51,3)[2]. Por meio do canto litúrgico, a Quaresma então se traduz num itinerário em que o ‘errante’ se volta para Deus, escutando sua Palavra, abrindo o coração e deixando-se guiar por ele. Hoje, somos nós esses ‘errantes’, que queremos nos voltar a Deus, escutá-lo, e não mais proceder como assim o fizeram nossos antepassados. (cf. Sl 95/94,7-10). A estrada do Êxodo, da qual fala o Prefácio V da Quaresma, pela qual tomamos consciência de que somos povo da aliança, é o sinal de nossa caminhada quaresmal.
            Consideramos que, aguçando os sinais sensíveis do canto litúrgico quaresmal – melodia, ritmo, texto poético, imagens e paisagens, rimas e expressões – por meio de sua aplicação pedagógica, mesmo fora das celebrações – a comunidade se torna protagonista do evento da salvação, realizada por toda a caminhada quaresmal, e tendo sua culminância na Páscoa, espalhando suas ramificações ao longo de todo o ano litúrgico. Assim:
            O canto de Abertura das celebrações quaresmais cumpre o papel de criar comunhão, promover na assembleia um estado de ânimo apropriado para a escuta da Palavra de Deus[3], dando o clima da celebração e introduzindo a assembleia no mistério do tempo litúrgico, do domingo ou da festa[4], já que com suas características próprias convoca a assembleia e, pela fusão das vozes, junta os corações no encontro com o Ressuscitado[5]
            Pelo canto do Ato Penitencial aclamamos o Senhor como Kyrios e imploramos a sua misericórdia. A fórmula 3 do Missal Romano contém diversas aclamações próprias para o tempo da Quaresma[6]. O canto dessas partes constitui o próprio rito, é ocasião específica em que a assembleia toma sua parte no conjunto dos cantos da celebração, motivada pelo animador, alternando entre grupo de cantores ou solistas, como é o caso do Kyrie eleison e do Cordeiro de Deus, da família das ladainhas, ou ainda responde cantando em uníssono a exortação de quem preside: Eis o mistério da fé! Anunciamos, Senhor... Dependendo da forma e do arranjo, a melodia dessas partes proporciona uma participação mais exaustiva, como é o caso do Hino de Louvor e do Santo, cantos que são constituídos de louvores, súplicas e júbilos ao Cristo e ao Pai. Em outro contexto se situa o canto das respostas da Oração Eucarística, essas pequenas intervenções possuem caráter de aclamação e carece que toda assembleia participe.
            O canto do Salmo responsorial constitui um comentário lírico-poético da primeira leitura. Ocupa um espaço significativo como resposta por dois motivos: porque é escolhido para responder à Palavra de Deus proclamada, sendo a própria Palavra, prolongando, assim, seu sentido teológico-litúrgico e espiritual. Este prolongamento vai se dando enquanto o(a) salmista entoa as estrofes como solista e a assembleia repete o mesmo refrão, num uníssono[7]. É por isso que é chamado de responsorial. É um canto sem “malabarismos” melódicos, contudo seja entoado ao ritmo da palavra e da poesia, “cantilado”. Não pode ser omitido, haja sempre a forma cantada ou proclamada. Pelo canto do Salmo e pelo silêncio o povo se apropria dessa Palavra de Deus e a ela adere pela profissão de fé. O canto favorece a compreensão do sentido espiritual do salmo e contribui para sua interiorização[8].
            Pelo canto da Aclamação a assembleia dos fiéis acolhe e saúda o Senhor, que lhe falará no Evangelho. Omitindo-se a expressão “Aleluia”, este canto louva o Verbo de Deus, que nos tirou das trevas da morte, introduzindo-nos no reino da vida. Além de acompanhar a procissão do livro dos evangelhos (evangeliário) até a estante da palavra, este canto prepara o coração dos fiéis para a escuta atenta d’Aquele que só tem a nos dizer “palavras de vida eterna” (cf. Jo 6,68) [9]. O solista ou o grupo de cantores entoa o versículo do domingo respectivo.
            O canto que acompanha a Procissão das Oferendas se prolonga pelo menos até que os dons tenham sido colocados sobre o altar. Pode se prolongar também durante o recolhimento das ofertas da comunidade, mesmo sem a procissão dos dons. Sua finalidade consiste em dar um maior significado à coleta, criando um clima de alegria, de generosidade, de louvor, de bendição pelos dons, todavia seu texto não precisa falar necessariamente de pão e de vinho, muito menos ainda de oferecimento ou oblação[10]. Como não é um canto obrigatório, estamos cada vez mais conscientes de que o mais importante é o canto de quem preside, por isso na apresentação do pão e do vinho este entoa em voz alta as fórmulas da bênção, às quais o povo aclama cantando “Bendito seja Deus para sempre”. No entanto, nada impede que um solo instrumental seja executado antes do canto da presidência[11], o que pode ser uma das raras oportunidades para o organista virtuoso, ou o violonista, ou flautista habilidoso, ou ainda um conjunto de câmara, executarem uma peça musical propícia ao momento ritual[12].
            O canto da Comunhão acompanha a procissão daqueles que se dirigem à mesa da comunhão. Tem início quando quem preside comunga, prolongando-se enquanto os fiéis comungam, até o momento que pareça oportuno. Este canto, que retoma sempre o sentido do Evangelho do dia, deve ser cantado por toda a assembleia, expressando pela união das vozes a união espiritual daqueles que comungam, demonstrando ao mesmo tempo a alegria do coração e tornando mais fraternal a procissão dos que vão avançando para receber o Corpo e o Sangue de Cristo[13]. Se não for cantado, vale aqui a mesma orientação aos instrumentistas dada para a procissão dos dons. Os instrumentos podem ainda fazer interlúdios entre as estrofes e o refrão, por se tratar de um dos cantos mais longos da celebração[14]
            Sinal sensível da assembleia pascal são os instrumentos musicais, por isso seu som durante o tempo da Quaresma é reservado apenas para sustentação da afinação do canto da assembleia e de quem a anima, por aí entendemos o motivo de reduzirmos o volume e a quantidade de instrumentos musicais, assim favorecendo o silêncio contemplativo em momentos propícios nas nossas assembleias litúrgicas (Carta preparatória para as festas pascais, nº 17). Que os microfones sejam reservados apenas àqueles que executam solos ou sustentem o canto da assembleia[15]. Os ministros músicos, tendo em vista sua sensibilidade e dedicação litúrgica, devem particularmente prestar atenção a essa orientação.
            Os ministros que ornamentam o espaço litúrgico devem também se apropriar dessa índole quaresmal. A ausência de flores e folhagens é a expressão de uma espera vigorosa pela páscoa que se aproxima, com todo seu esplendor e colorido. De fato, a Igreja nos educa na fé, nesse grande itinerário pedagógico que é o ano litúrgico, por isso o vazio, a ausência desses sinais que são sensíveis ao nosso sentido, e ao mesmo tempo visíveis, fazem com que todo nosso corpo participe e se aproprie das características específicas do tempo da Quaresma, reservando as alegrias que eles nos proporcionam para aquela esperada noite da Vigília Pascal, e prolongando-as durante todo o tempo pascal[16].
            No Brasil, é costume expressarmos nosso gesto exterior da Quaresma com os apelos que a Campanha da Fraternidade nos suscita: “Casa comum, nossa responsabilidade”, com o lema: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca (Am 5,24)” – CF 2016. Tendo em vista sua característica ecumênica, no CD gravado não foram contempladas músicas litúrgicas para as celebrações eucarísticas do tempo da Quaresma [cinco semanas e o Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor]. Havendo, por exceção, celebrações ecumênicas ao longo deste tempo, é recomendado o uso das canções contempladas no CD[17].
            Para facilitar a todos quantos se dedicam ao ministério da animação do canto e da música em nossas comunidades, aos instrumentistas, salmistas e integrantes de grupos vocais e instrumentais, preparamos abaixo uma tabela com as sugestões propostas pelo Hinário Litúrgico da CNBB, bem como outras composições aprovadas pelo Setor de Música Litúrgica da CNBB e outras gravações, além de cantos tradicionais próprios deste tempo.
            Contudo, o bom músico litúrgico saberá tirar de seu baú aquelas composições que tão bem retornam neste tempo, às quais lhe expressam o sentido característico com seu conteúdo, temas, a Palavra de Deus, enfim, o aspecto do mistério pascal que celebramos. É preciso saber escolher bem os cantos, que acentuem a conversão, a misericórdia, o perdão, a fraternidade e solidariedade, a vida, a luz, inspirados no Evangelho do dia, mas sempre com os horizontes voltados para a Páscoa de Jesus, mistério central que celebramos em nossas liturgias. Cantos tradicionais e que já estão na memória do povo, devem fazer parte do repertório: Pecador, agora é tempo... O vosso coração de pedra... Prova de amor maior não há...[18]
                Pensemos então que a Quaresma é um ‘tempo de teste’ para nossa fidelidade na resposta ao plano de Deus. Mas, por vezes esquecemos que somos batizados, e por isso perdemos a direção. É justamente aí que este tempo nos propicia um desejo de renovar e reavivar em nossos corações as disposições com que, durante a Vigília Pascal, pronunciaremos de novo as promessas do nosso batismo. As leituras que ouviremos durante esse tempo nos recordam que somos seres batismais, em constante conversão (característica das leituras da Quaresma do Ano C).
            Enfim, viver a Quaresma é saborear o difícil itinerário da passagem da morte para a vida. Sabemos que passamos da morte à vida se amamos os irmãos (cf. 1Jo 3,14). Sobretudo, devemos lembrar que somos discípulos/as de Jesus, que superou o fracasso humano da cruz com um amor que vence a morte, e que, de nossa parte, o jejum e a caridade, traduzidos na solidariedade fraterna em favor do/a outro/a, do mundo, do planeta e do cosmos – conforme nos lembra a Campanha da Fraternidade deste ano – nos colocam nesse mesmo patamar de Jesus, que, intensificando seu desejo de amar até o fim, passou pelo mal, vencendo-o.
            Juntemos o nosso desejo ao de Jesus. Assim, como diz a regra de São Bento, com a alegria do Espírito Santo e cheios do desejo espiritual, esperemos a santa Páscoa.






[1] Kolling, Ir. Miria T., em artigo produzido para subsídios litúrgicos.
[2] Veloso, Reginaldo. Introdução ao Hinário Litúrgico da CNBB, Volume II – Ciclo da Páscoa, São Paulo: Paulus, pág. 7.
[3] CNBB. A Música Litúrgica no Brasil (Estudos da CNBB nº 79, 1998). São Paulo: Paulus, 2005 (Documentos sobre a música litúrgica), pp. 135-136.
[4] CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil (Documentos da CNBB nº 43, 1989). 21ª edição. São Paulo: Paulinas, 2008, pp. 83-84.
[5] CNBB. A Música Litúrgica no Brasil (Estudos da CNBB nº 79, 1998). São Paulo: Paulus, 2005 (Documentos sobre a música litúrgica), pp. 135-136; cf. SC, 112.
[6] O CD “Partes fixas - Ordinário da Missa”, gravado pela Paulus, com melodias do Hinário Litúrgico da CNBB, possui várias possibilidades de se cantar essas partes que compõem o próprio rito (Senhor, tende piedade, Santo, Aclamação memorial, Amém e o Cordeiro de Deus, que acompanha a fração do pão). 
[7] Fonseca, Joaquim. Ofm. Cantando a missa e o ofício divino. São Paulo: Paulus, 2004, pág. 26 (Coleção Liturgia e Música 1).
[8] Idem.
[9] Idem, pág. 32.
[10] Idem, pág. 34.
[11] Idem.
[12] Quanto ao uso dos instrumentos musicais, vale a pena consultar a orientação dos Estudos da CNBB, nº 79, A música litúrgica no Brasil, às págs. 115-118.
[13] Cf. Missal Romano (2002),  86, opus cit. in Fonseca, Joaquim. Ofm. Cantando a missa e o ofício divino. São Paulo: Paulus, 2004, pág. 60 (Coleção Liturgia e Música 1).
[14] Quanto ao uso dos instrumentos musicais, vale a pena consultar a orientação dos Estudos da CNBB, nº 79, A música litúrgica no Brasil, às págs. 115-118.
[15] Cf. Carta aos agentes da música litúrgica, CNBB, setembro/2008.
[16] Dois subsídios interessantes para aprofundamento desse tema são os livros de Ione Buyst, Símbolos na Liturgia, Ed. Paulinas, 1998 e Celebrar com símbolos, Ed. Paulinas, 2001.
[17] O Texto-base da CF 2016, pág. 65-74, traz uma bonita sugestão de celebração ecumênica, inclusive citando canções próprias desta CF e de outras campanhas ecumênicas já realizadas no Brasil.
[18] Kolling, Ir. Miria T., em artigo produzido para subsídios litúrgicos.

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