Quaresma: alimentar-se da espiritualidade do mistério pascal




Introdução
Para aproveitar melhor a riqueza dos textos e das intuições pedagógicas das expressões rituais do tempo da Quaresma, a comunidade cristã deveria iniciá-lo visitando os textos da liturgia deste tempo sob a forma de um retiro espiritual entre a Quarta-feira de Cinzas e o 1º Domingo da Quaresma. Sugerimos: o texto e o ensaio mistagógico de um belo canto da Ladainha de Todos os Santos e Santas, que será entoado na procissão de entrada, a Oração Coleta e a Oração pós-comunhão do 1º Domingo da Quaresma.
Esta modalidade de aprofundamento, feito numa tarde, por exemplo, ajudará o povo a se alimentar de uma espiritualidade que tem origem no próprio tempo litúrgico. É o que recomenda o número 107 da Sacrosanctum Concilium: “a fim de alimentar devidamente a piedade dos fiéis, sobretudo [alimentar-se] da espiritualidade do mistério pascal”.
É nos retiros quaresmais que se deve perceber e se alimentar dessa linguagem bíblica e litúrgica, principalmente pela leitura orante. Essa prática ressoará num melhor aproveitamento das celebrações do tríduo pascal, já que a Quaresma tem como fim a preparação para essas festas.
Também o povo é convidado a ter uma vida marcada pela oração mais intensa, cuja finalidade se dá com a renovação das promessas do Batismo, na vigília pascal (PCFP, 6). Mas, infelizmente o povo só tem contato com os textos eucológicos [conjunto das orações da Igreja] apenas nos momentos da celebração, muitas vezes despercebidos de sua riqueza e intenção.
O que dizem as orientações
Diz o nº 23 da Carta Preparatória para as celebrações das Festas Pascais, PCFP [Paschalis Sollemnitatis, 16/01/1988, Congregação para o Culto Divino]:

O 1º domingo da Quaresma assinala o início do sinal sacramental da nossa conversão, tempo favorável para a nossa salvação. Na missa deste domingo não faltem os elementos que sublinham tal importância; por exemplo, a procissão de entrada, com a ladainha dos santos.

Trata-se de uma leitura pedagógica do sinal sacramental de nossa conversão, ao sugerir que não se falte neste domingo os elementos que sublinham essa atitude.

Analisando os sinais sacramentais do início da Quaresma
Os sinais sacramentais da  nossa conversão que marcam o início da Quaresma são dois: um de ordem cósmica e outro de ordem moral: as cinzas e o mal. O primeiro é revestido de um princípio pedagógico-sacramental que nos remete à experiência da graça, isto é, viver como seres reconciliados é vivermos com a lembrança da eterna páscoa em nós.
O segundo, o mal, já é citado na Oração Coleta da Quarta-feira de Cinzas:Concedei-nos, ó Deus todo-poderoso, iniciar com este dia de jejum o tempo da Quaresma, para que a penitência nos fortaleça no combate contra o espírito do mal. Um dia de jejum é uma forma de penitência na luta contra o mal. Mas o espírito do mal será explicitamente citado no Evangelho do 1º Domingo da Quaresma: as tentações de Jesus.

Os dois elementos estão intimamente conectados nas liturgias do início da Quaresma, principalmente ao ouvirmos os Evangelhos. A reconciliação implica numa vida austera, sabendo que somos pó, símbolo da destruição (os grãos, quando moídos, podem ser reduzidos a pó, por exemplo), nos faz conscientes de sermos merecedores da graça, e que viver o bem é uma forma segura de vencermos o mal que se faz presente na humanidade.
A pedagogia da oração da Igreja
A condição espiritual e social para a superação do mal é pedagogicamente apresentada na oração da Igreja do 1º Domingo da Quaresma: progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa.O mal se vence conhecendo-se Jesus e a ele aderindo.

Por isso a Igreja se serve de práticas adequadas para completar a formação do povo (retiros, por exemplo), cuja origem se encontra na Palavra de Deus. Essas práticas estão coadunadas com a lembrança do mistério pascal, no decorrer das celebrações ao longo do Ano Litúrgico (cf. Sacrosanctum concilium, 105). Encontramos aqui um veio pedagógico já intuído na eucologia e nos ritos da Igreja, que finca suas raízes na Sagrada Escritura.

O canto da Ladainha de todos os Santos e Santas
A Ladainha de todos os Santos e Santas de Deus,  cantada na procissão de abertura da celebração do 1º Domingo da Quaresma traduz a força pedagógica da fé. De modo implícito, encontramos nos santos e santas os sinais de conversão que eles mesmos aplicaram em sua vida, por isso souberam “progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa” [Oração Coleta do 1º Domingo da Quaresma].
Da mesma forma, são estes e estas que, tendo desejado o Cristo através do sinal do pão eucarístico, souberam devotar suas vidas nutridos pela fé, esperança e caridade, ao mesmo tempo “vivendo de toda palavra que sai da boca de Deus” [Oração pós-comunhão do 1º Domingo da Quaresma].
O sacramento da Reconciliação    
A nosso ver, o sacramento da Reconciliação deixou de ter seu sentido celebrativo, passando para uma obrigação moral. Com essa preocupação, o sacramento perde sua característica batismal, pois a identidade do batizado é caracterizada por seu discipulado, que ao longo do Ano Litúrgico, vai vivendo esse itinerário pedagógico de conversão.
É bom que o sacramento da Reconciliação recupere sua dimensão celebrativa. Para isso os presbíteros devem insistir na preparação das equipes celebrativas. As celebrações penitenciais, como muitos entendem, não servem para preparar os fiéis para a confissão individual, ao contrário, nessas celebrações, a confissão individual dos pecados é parte integrante. Infelizmente não é o que acontece em nossas comunidades.
A conversão é parte do processo de reconciliação e se liga à recuperação da identidade de batizados, de povo sacerdotal, e não a uma leitura que se entende de que se entrou num processo de privatização excessiva do pecado, a ponto de conclamar a todos que confessem seus pecados.
Hoje, essa questão da moral individualizada por demais requer um sentido mais comunitário, exige-se uma dimensão mais social do pecado. Todo pecado pessoal é também social, diz a Exortação Apostólica Reconciliação e Penitência, de João Paulo II. Abaixa-se a humanidade inteira pelo pecado ou eleva-se a humanidade inteira pela graça.
Faz bem lembrar que a confissão não é o centro do sacramento, mas como parte do sacramento implica numa atitude que deriva da vontade de reconciliar-se com os outros, com o mundo, com o cosmos.
O motivo de reconciliação para com os outros é um chamado que se faz durante todo o Ano Litúrgico, e não somente na Quaresma e na Semana Santa. De fato, é nos tempos fortes que encontramos momentos propícios para ligar a prática da Reconciliação com a liturgia, como por exemplo, a celebração do Domingo do Pai misericordioso – 5º Domingo da Quaresma – Ano C, ou em outra ocasião em que esta leitura se faz presente.
Concluindo: propostas pedagógicas
No Tempo da Quaresma, vivido como itinerário pedagógico na conduta da fé, consequentemente, vivido através de uma espiritualidade que nos torna e nos quer convertidos, na troca das atitudes más pelas boas, encontramos as seguintes propostas da Igreja, que, com seus ritos e preces, espera de nós:
  1. Voltarmos a uma atenção geral ao mistério pascal (viver conforme vive quem é ressuscitado; os santos e santas são a prova disso);
  2. Percorrermos um itinerário batismal (para os que ainda não estão inseridos na comunidade; o caminho para as fontes batismais é sempre enriquecido com boas obras, conforme o RICA);
  3. Correspondermos a uma vida pautada na ética e na comunhão com os outros, isto é, colaborando no plano do Reino, em paz com o mundo, com os outros e com o cosmos, em atitude de respeito e cooperação (mudança de vida implica em vida comunitária, isto inclui também a atitude ecológica, o respeito ao planeta, as práticas solidárias voltadas para a paz e o convívio entre as pessoas);
  4. Apoiarmos nossa caminhada num caráter todo cristológico e pascal (que permeia não só a Quaresma, mas todos os outros tempos litúrgicos);
            E, de nossa parte, é preciso também observarmos que este itinerário quaresmal:
  1. Implica em graça, por parte de Deus, e da nossa parte um esforço para tentarmos viver e permanecer nessa graça (tentarmos viver, é isso mesmo; os santos são os melhores exemplos para isso).
  2. Consiste em vivermos como num grande retiro, deixando que a Palavra de Deus nos questione, trazendo luz naquilo que necessita de conversão (vale a pena aqui citar a vida de alguns santos presentes no canto da ladainha, sugerido para a abertura do 1º Domingo da Quaresma).
  3. Exige de nossa parte uma renovação das promessas, num constante desejo de vivermos uma vida nova e de permanecer nesta vida nova (aspiração à santidade).
            Ajuda-nos neste sentido a especial recomendação do nº 12 da PCFP que orienta aos presbíteros:

Sobretudo nas homilias do domingo seja ministrada a instrução catequética sobre o mistério pascal e sobre os sacramentos, com explicação mais cuidadosa dos textos do Lecionário, sobretudo as perícopes do Evangelho, que ilustram os vários aspectos do Batismo e dos outros sacramentos e também a misericórdia de Deus.

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